sábado, 21 de agosto de 2010

Lugares-comuns

Fernando Sabino

Lugar-comum: alguma coisa comum, ou seja, trivial, batida, vulgar, ordinária como expressão de uma idéia, e que tanto pode assumir a forma verbal, como a de certas atitudes ou mesmo intenções, em determinadas circunstâncias. Determinadas circuns-tâncias, por exemplo, é lugar-comum.

Mencken afirmava que o lugar-comum nasceu do medo ante o desconhecido: a segurança da soci-edade estaria na suposição de que o homem reagirá sempre de maneira já conhecida e consagrada, para não criar uma nova situação que ninguém saberia como enfrentar. Talvez remonte ao primeiro homem, ao descobrir a primeira verdade: quando Adão colheu na Árvore da Vida a ciência do bem e do mal, a maçã se tornou o lugar-comum da tentação e a serpente o da baixeza e da traição. O espírito de Deus ainda se movia na face das águas e já sugeria aos futuros poetas bíblicos um lugar-comum.

O próprio Eclesiastes se encarregou de provar que não há nada de novo debaixo do sol. Modos de dizer, provérbios e frases feitas que hoje em dia ro-lam na boca do povo e até em sambas de carnaval, saíram da Bíblia. Quando afirmamos que não ficará pedra sobre pedra, que nem só de pão vive o ho-mem, que este mundo é um vale de lágrimas, que a carne é fraca, mas vale casar-se que abrasar-se, já nem percebemos que estes lugares-comuns são verdades enunciadas pelo Novo Testamento. Desde que Cristo respondeu à astuciosa questão do tributo, proposta pelos fariseus, a todo momento nos dizem que devemos dar a César o que é de César, gerando um lugar-comum – sempre nos esquecendo, aliás, de acrescentar que devemos a Deus o que é de Deus.

Não há verdade que resista à repetição. A idéia original acabava no lugar-comum, como Pilatos no Credo – depois de ter lavado as mãos. “Ser ou não ser” – eis a questão a que o lugar-comum reduziu toda a obra de Shakespeare. “Penso, logo existo” ficou sendo a única razão de Descartes ter existido, ante a qual melhor fora não ter pensado. Nero nas-ceu, viveu e aconteceu, para tanger a lira diante do incêndio de Roma, e depois se matar dizendo que o mundo ia perder um grande artista. Napoleão será sempre um homem com dois dedos enfiados entre os botões do colete, com representantes em quase todos os hospícios do mundo. Arquimedes poderia ter passado o resto da vida sem tomar banho e não deixaria de ser um homem que saltou da banheira e saiu despido a gritar: “Eureka!” pelas ruas. Diógenes foi aquele que viveu dentro de um tonel, pediu a Ale-xandre que não lhe tapasse o sol e um dia (ou uma noite) saiu com uma lanterna mão procurando um homem. César, o mesmo a quem se deve dar o que é dele, foi um imperador romano que cruzou o Rubicão, disse “Cheguei, vi e venci”, e, ao ser apunhalado, exclamou: “Tu também, Brutus!”

Não há como escapar. Experimente alguém e-vitar o repertório de lugares-comuns e idéias feitas, nas diferentes situações sociais. Em visita de pêsa-mes, ouse dizer outra coisa que “meus pêsames”, “meus sentimentos”, “é preciso a gente se confor-mar”, “parece incrível, outro dia mesmo estive com ele, tão bem, tão alegre”, “é o fim de nós todos”, “foi melhor para ele”, “afinal descansou”, “o que consola é saber que ele agora está melhor do que nós”, “Deus sabe o que faz”. Ou deixe de afirmar, a uma visita inesperada, eu se trata de uma agradável surpresa, custou mas apareceu, e dizer que ainda é cedo para partir, pedir que volte sempre, já que aprendeu o caminho. Ou evite, numa carta, os votos de boa saúde, extensivos à excelentíssima família, as atenciosas saudações, o cordial abraço, os protestos de elevada estima e consideração. Ou ainda elimine os gestos convencionais que exprimem surpresa, alegria, interesse ou comiseração. Esqueça o sorriso de modéstia, de gentileza, de agradecimento. Experimente, enfim, proceder em sociedade de maneira diferente, não consagrada, e estará ingressando no mundo dos loucos ou atingindo a pureza dos santos.

Vocabulário
Henry Louis Menchen (1880-1956), jornalista e escritor norte-americano.
Eclesiastes: um dos livros da Bíblia
tributo: imposto
fariseus: membros de uma classe judaica hostil a Jesus. A questão do imposto está em Mateus 22, 15-22.
Pôncio Pilatos: governador da Judéia, então colônia de Roma. O nome dele ficou no Credo da Igreja Católica: “...padeceu sob Pôncio Pilatos...”
“ter lavado as mãos”: Pilatos tentou, em vão, convencer os judeus a não matar Jesus. Por fim, lavou as mãos, como sinal de inocência diante da morte de Jesus.
Shakespeare: Willian Shakespeare (1564-1616), dra-maturgo inglês.
Descartes: René Descartes ( 1596-1650), filósofo fran-cês.
Nero: (37-68), cruel imperador romano. Incendiou Roma.
Arquimedes (287-212 a.C.): cientista grego.
Eureka!”: palavra grega que significa “descobri”. Dió-genes a teria dito após descobrir uma lei da Física.
Diógenes: (413-327 a.C.) filósofo grego, famoso por desprezar a riqueza e as convenções sociais.
Rubicão: Quando César ainda era apenas governador das Gálias, atravessou o rio Rubicão, na divisa italiana, e marchou à frente de sua legião contra as tropas de Pompeu, seu rival político. Ao atravessar o Rubicão, disse uma frase que ficou famosa: “Alea jacta est” (O dado, à sorte, está lançado). A frase tem sentido, porque, segundo um decreto romano, quem transpusesse o rio com uma tropa, seria declarado traidor da Pátria. A frase é hoje usada para expressar uma decisão cujas conseqüências poderão ser graves, mas da qual já não se pode recuar.
comiseração: piedade, pena

Um comentário:

  1. Eu tenho um pedaço desse texto
    na minha apostila!
    Da Dom Bosco, é interessante!
    :)
    By:Solane Andrade Santos!

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